
O comunismo, enquanto proposta de organização social e econômica, emergiu como uma das correntes mais influentes e controversas da história moderna. Fundamentado nas obras de Karl Marx (1818–1883) e Friedrich Engels (1820–1895), o comunismo propõe a construção de uma sociedade sem classes, em que os meios de produção sejam apropriados coletivamente e o Estado, supostamente, torne-se desnecessário e pereça. Este artigo debruça-se sobre os fundamentos teóricos do comunismo, conforme delineados nos escritos de Marx e Engels, e examina os países que, ao longo do século XX e início do século XXI, se proclamaram “comunistas”, analisando sua adesão às ideias originais e as transformações operadas na prática.
1. Origens e Contexto Histórico
1.1 O Espírito do Século XIX
No turbilhão de transformações sociais e econômicas provocadas pela Revolução Industrial, à medida que bebês e mercados se expandiam, também emergiam novas formas de exploração laboral. Marx e Engels presenciaram fábricas com jornadas de trabalho exaustivas, crianças em condições degradantes e profundas desigualdades de renda. Foi nesse contexto que se colocaram questões fundamentais: quem detém o excedente produzido pelo trabalho? Como superar a opressão de classe e evitar crises cíclicas do capitalismo?
1.2 A Colaboração Marx–Engels
Em 1844, Marx e Engels se conheceram em Paris, dando início a uma parceria intelectual decisiva. Engels, autor de A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra (1845), forneceu a Marx dados empíricos sobre as condições dos operários britânicos. Marx, por sua vez, desenvolveu a crítica ao capital em obras como O Capital (1867). Juntos, em 1848, publicaram O Manifesto do Partido Comunista, documento que sintetiza os princípios iniciais do comunismo científico.
2. Fundamentos Teóricos do Comunismo
2.1 Materialismo Histórico
Marx e Engels propuseram o materialismo histórico como método para entender as sociedades humanas: as relações de produção (quem controla os meios de produção) moldam as superestruturas políticas, jurídicas e culturais. À medida que as forças produtivas se desenvolvem, as relações de produção podem se tornar um entrave, levando à necessidade de transformação revolucionária.
2.2 Luta de Classes
No centro da análise marxista está a luta de classes. Segundo Marx, todas as sociedades anteriores ao comunismo conheceram conflito entre classes exploradoras e exploradas: senhores e servos, nobres e camponeses, burgueses e proletários. A burguesia, ao emergir como classe dominante, promoveu revoluções políticas e instituiu a propriedade privada dos meios de produção.
2.3 Teoria do Valor-Trabalho e Mais-Valia
Em O Capital, Marx desenvolveu a teoria do valor-trabalho: o valor de uma mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho socialmente necessário para produzi-la. A burguesia apropria-se da “mais-valia” gerada pelos trabalhadores – a diferença entre o valor criado no processo produtivo e o salário pago – configurando exploração.
2.4 Ditadura do Proletariado
Marx e Engels previram que o proletariado, uma vez consciente de seus interesses de classe, derrubaria a burguesia e implantaria uma ditadura do proletariado: fase de transição em que o Estado – aparelho de coerção – serviria para suprimir a resistência das classes derrotadas e reorganizar a economia. Após o abrandamento das contradições e o desenvolvimento de abundância material, o Estado tenderia a “definhar”.
3. O Manifesto Comunista e seus Objetivos
3.1 Estrutura e Mensagem
Publicado pela Liga dos Comunistas em fevereiro de 1848, O Manifesto é estruturado em quatro seções:
- Burgueses e Proletários: análise da ascensão burguesa e da emergência proletária.
- Proletários e Comunistas: objetivos dos comunistas em relação ao proletariado.
- Literatura Socialista e Comunista: crítica a outras correntes socialistas.
- Posição dos Comunistas: chamadas à ação internacional.
3.2 Posição Internacionalista
Um dos pontos mais célebres do manifesto é a conclamação: “Proletários de todos os países, uni-vos!” — enfatizando a luta global contra o capitalismo, rompendo com nacionalismos que poderiam dividir a classe trabalhadora.
3.3 Medidas Imediatas
Marx e Engels sugeriram uma série de medidas transitórias, como:
- Imposto progressivo de renda.
- Abolição do direito de herança.
- Confisco de propriedades de emigrados e rebeldes.
- Centralização do crédito e dos transportes nas mãos do Estado.
- Educação pública gratuita e abolição do trabalho infantil.
Essas medidas, segundo eles, preparariam o terreno para a futura sociedade comunista.
4. Transição: Da Europa ao Mundo
4.1 O Capital e a Análise das Contradições
Em O Capital, Marx aprofundou a análise da acumulação de capital, das crises econômicas e da tendência à queda da taxa de lucro, concluindo que o capitalismo continha em si as sementes de seu próprio colapso. Engels, em obras como Anti-Dühring (1878), sistematizou as ideias e defendeu a extensão do comunismo científico a diversas áreas do conhecimento, incluindo a filosofia e as ciências naturais.
4.2 A Questão Agrária
Marx e Engels evitaram prescrições detalhadas para as sociedades agrárias atrasadas, mas reconheceram a necessidade de reforma agrária. Engels, em seus escritos tardios, sugeriu formas de coletivização da terra e cooperação agrícola, sem replicar mecanicamente o modelo industrial europeu.
5. Países Comunistas: História e Prática
Desde o início do século XX, vários Estados adotaram formalmente o “comunismo” ou “socialismo”, inspirando-se em maior ou menor grau nas ideias de Marx e Engels. A seguir, um panorama dos principais exemplos.
5.1 União Soviética (1922–1991)
5.1.1 Revolução de Outubro (1917)
Liderados por Vladimir Lenin, os bolcheviques derrubaram o governo provisório russo em novembro de 1917 (Revolução de Outubro no calendário gregoriano). A tomada de poder inaugurou a primeira experiência estatal baseada em ideias marxistas, embora adaptadas por Lenin (marxismo-leninismo).
5.1.2 NEP e Coletivização
Entre 1921 e 1928, a Nova Política Econômica (NEP) inseriu elementos de mercado na economia soviética para recuperar a produção. Posteriormente, Stalin impôs a coletivização forçada da agricultura e a industrialização acelerada, resultando em milhões de mortos por fome e repressão política.
5.1.3 Planificação e Burocracia
O planejamento central, articulado em Planos Quinquenais, buscou elevar a indústria pesada. Contudo, o Estado burocrático stricto sensu afastou-se do ideal de “ditadura do proletariado”, concentrando o poder em uma elite partidária e crescendo um aparato político coercitivo.
5.2 República Popular da China (desde 1949)
5.2.1 Revolução Comunista
Sob a liderança de Mao Tsé‑Tung, o Partido Comunista Chinês venceu a guerra civil em 1949, proclamando a República Popular. Adotou-se o marxismo-leninismo-maoísmo, enfatizando a revolução camponesa ao invés do proletariado urbano.
5.2.2 Grande Salto Adiante e Revolução Cultural
Entre 1958 e 1962, o “Grande Salto” objetivou rápido avanço industrial mas gerou a maior fome da história recente. Na década seguinte, a Revolução Cultural (1966–1976) buscou purgar “elementos burgueses”, provocando caos político, perseguições e retrocesso econômico.
5.2.3 Reformas de Deng Xiaoping
A partir de 1978, Deng introduziu reformas de mercado (“socialismo com características chinesas”), desconectando-se em grande parte do planejamento central clássico, resultando em crescimento econômico mas inequidades acentuadas.
5.3 República de Cuba (desde 1959)
5.3.1 Revolução Cubana
Fidel Castro e Che Guevara derrubaram o regime de Fulgencio Batista em 1959. Inicialmente, buscou-se uma reforma agrária moderada, mas logo Cuba alinhou-se à União Soviética, adotando um modelo estatal de economia planejada.
5.3.2 Bloqueio e Solidariedade Internacional
O embargo americano e a crise dos mísseis (1962) reforçaram a dependência soviética e a centralização política. Cuba enviou médicos e militares a movimentos revolucionários pela África e América Latina, projetando-se como potência “solidária”.
5.3.3 Ajustes Pós‑URSS
Com o colapso soviético, Cuba enfrentou a “década especial” (anos 1990), incorporando tímidas reformas ao setor privado e abrindo ao turismo, porém mantendo monopólios estatais em áreas-chave.
5.4 República Democrática Popular da Coreia (desde 1948)
A Coreia do Norte, fundada em 1948, autodenomina-se “democracia popular” e “socialista”. Sob Kim Il‑sung e sucessores, desenvolveu uma economia planificada e culto de personalidade, mas isolada internationalmente. A escassez crônica e o militarismo contrastam com a retórica marxista.
5.5 República Socialista do Vietnã (desde 1976)
Após a reunificação em 1976, o Vietnã socialista instituiu um modelo de economia planificada, inspirado no padrão soviético. Desde 1986, o “Đổi Mới” introduziu reformas de mercado, atraindo investimentos estrangeiros e alcançando rápido crescimento econômico.
5.6 República Democrática Popular do Laos (desde 1975)
Menor e mais pobre, o Laos instituiu em 1975 um regime marxista-leninista. O país enfrenta desafios de infraestrutura e dependência externa, mantendo um regime político partidário único e introduzindo reformas de mercado semelhantes às do Vietnã.
6. Confronto entre Teoria e Prática
6.1 Desvios do Projeto Original
Embora inspirados em Marx e Engels, os regimes comunistas do século XX distanciaram-se em vários aspectos:
- Ausência de Democracia Operária: longe de uma gestão coletiva dos trabalhadores, instauraram-se partidos únicos e aparatos repressivos.
- Burocratização: o Estado cresceu como entidade autônoma, gerando privilégios para a nomenklatura.
- Planejamento Centralizado Rígido: antagonista à descentralização defendida por Engels em certos momentos, gerou ineficiência e escassez.
6.2 Críticas Internas e Reformas
Engels, em vida, admitiu a necessidade de inovação táctica conforme o contexto: mas os regímenes do século XX não seguiram o ideal de “autodeterminação imediata” dos trabalhadores. As reformas chinesas, vietnamitas e cubanas ilustram a busca por modelos híbridos que conciliem planejamento e mercado.
6.3 Legado e Atualidade
Apesar dos fracassos, as grandes potências comunistas transformaram a geopolítica global, impulsionaram a industrialização em massa e promoveram indicadores sociais (alfabetização, saúde) antes inalcançáveis. Hoje, países como China e Vietnã adotam economias mistas, enquanto Cuba lentamente amplia o setor privado.
7. Considerações Finais
O comunismo, em sua concepção marxista, visava libertar a humanidade das amarras da exploração e das desigualdades de classe. Marx e Engels elaboraram uma análise histórica e econômica profunda, fundamentando a possibilidade de uma sociedade sem classes. No entanto, a experiência concreta dos países que se declararam comunistas apresentou desvios significativos: autoritarismo político, burocratização e dificuldades econômicas. O legado marxista permanece vivo no debate sobre justiça social, distribuição de renda e críticas ao capitalismo contemporâneo. Resta compreender os acertos e erros do passado para pensar utopias e práticas que promovam, de fato, maior igualdade e liberdade à humanidade.
Referências Principais de Marx e Engels
- Karl Marx, O Manifesto do Partido Comunista (1848)
- Karl Marx, O Capital: Crítica da Economia Política (Volume I, 1867)
- Friedrich Engels, A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra (1845)
- Friedrich Engels, Anti-Dühring (1878)
Este artigo buscou sintetizar os conceitos centrais de Marx e Engels e relacioná-los com as experiências dos Estados autodenominados comunistas, oferecendo uma visão crítica e histórica do tema.