
A culinária é um dos elementos mais vivos e expressivos da cultura de um povo. Em cada prato, em cada tempero, em cada gesto de preparo, manifesta-se uma história coletiva. A cozinha popular não é apenas uma atividade de sobrevivência ou prazer; ela é também um espaço de resistência, memória e identidade.
Neste artigo, vamos explorar a culinária como expressão folclórica, mergulhando nos sabores e saberes que fazem parte do nosso cotidiano, mas que também revelam raízes profundas de nossa história, tradições e ancestralidade. Afinal, comer é um ato político, cultural e simbólico.
1. Comida como linguagem cultural
A comida fala. Ela narra trajetórias, conta histórias de migração, de luta, de conquista e de afeto. Em cada prato típico está inscrita uma memória coletiva. O arroz com feijão que comemos todos os dias, por exemplo, é fruto do encontro de três continentes: a mandioca dos povos originários, o feijão dos africanos e o arroz trazido pelos colonizadores europeus.
Quando olhamos para a culinária com olhos atentos, vemos nela uma linguagem cultural. A escolha dos ingredientes, o modo de preparo, os utensílios, os rituais à mesa: tudo isso fala sobre quem somos, de onde viemos, e como enxergamos o mundo.
2. O saber ancestral e o fazer com as mãos
O saber culinário popular é transmitido por gerações, muitas vezes de forma oral e prática. As receitas não são escritas, mas sentidas. Não se mede em gramas, mas em “um punhado”, “uma pitada”, “no olho”. Esse saber não está nos livros acadêmicos, mas nas cozinhas das casas simples, nos terreiros, nas festas de rua, nas mãos das avós e das parteiras que sabiam fazer o chá certo para curar, o mingau certo para acalentar, o doce certo para celebrar.
Esse saber ancestral é também um saber coletivo. Ninguém cozinha sozinho. Mesmo quando se está só na cozinha, os gestos repetem os de outros, de outras épocas. É um saber que se compartilha, que se aprende fazendo e vendo, num diálogo contínuo entre gerações.
3. Festa, fé e comida: o sabor do sagrado
A comida também tem papel central nas celebrações religiosas e festivas. No Brasil, é impossível falar de folclore sem falar das festas populares e suas comidas típicas. No Nordeste, por exemplo, as festas juninas não seriam as mesmas sem a pamonha, o milho assado, o bolo de fubá. No Candomblé, cada orixá tem seu prato preferido, preparado com rigor e respeito.
Em comunidades ribeirinhas, indígenas e quilombolas, a partilha da comida durante rituais é um momento de comunhão e pertencimento. A comida não apenas alimenta o corpo, mas conecta com o sagrado. Nesses momentos, ela deixa de ser apenas alimento e torna-se símbolo.
4. O folclore vivo na cozinha do dia a dia
Folclore não é passado morto. Ele está vivo na prática cotidiana das pessoas. A maneira como uma comunidade prepara sua comida, conserva seus ingredientes, organiza sua cozinha, tudo isso é manifestação do seu folclore.
Tomemos como exemplo o uso de panelas de barro, moquéns, fogões à lenha, pilões, peneiras de palha. São instrumentos que resistem à modernidade e seguem vivos nas cozinhas tradicionais. Mais que utilitários, são símbolos de uma forma de vida que valoriza o tempo do preparo, o toque humano e o respeito à natureza.
5. O papel da mulher na transmissão dos saberes
É importante reconhecer o protagonismo das mulheres na manutenção e transmissão da cultura culinária. São elas, muitas vezes, as guardiãs dos segredos das receitas, das técnicas de preparo, dos ingredientes da estação. No entanto, seu papel é frequentemente invisibilizado nas narrativas oficiais.
Quando valorizamos a culinária como expressão folclórica, também estamos valorizando essas mulheres que sustentam, com suas mãos e memórias, um patrimônio cultural imenso. Ao ouvir suas histórias, aprendemos não apenas receitas, mas formas de resistir, cuidar e celebrar a vida.
6. A comida como resistência
Em tempos de escassez e desigualdade, a culinária popular é também um ato de resistência. Com criatividade, comunidades inteiras transformam poucos ingredientes em refeições completas e nutritivas. O “sustança” do feijão, o caldo do ossobuco, o arroz de ontem que vira bolinho frito, são provas dessa capacidade de reinventar a vida com dignidade.
Essa resistência se expressa também na luta por soberania alimentar: plantar o próprio alimento, preservar sementes crioulas, cozinhar com ingredientes locais, evitar o ultraprocessado. É o povo dizendo: “nós sabemos nos alimentar e não precisamos ser dependentes das grandes indústrias.”
7. A reinvenção da tradição nas novas gerações
As novas gerações têm reinventado a culinária popular de forma criativa. Jovens cozinheiros estão resgatando receitas tradicionais e reinterpretando-as com novos ingredientes e técnicas. Festivais gastronômicos regionais, canais de YouTube de culinária popular, feiras orgânicas e coletivos de cozinheiras têm contribuído para manter viva essa herança.
É importante que esse resgate venha com respeito. A tradição não deve ser vista como algo fixo ou engessado, mas como uma base rica a partir da qual novas expressões podem emergir. O que não se pode perder é o vínculo com a comunidade, com a terra, com os afetos.
8. Culinária, identidade e pertencimento
A culinária é uma das mais fortes marcas identitárias de um povo. Comer uma comida típica é, muitas vezes, sentir-se em casa. Para migrantes, refugiados, comunidades que vivem na diáspora, a comida é uma ponte com o passado, uma forma de manter viva a memória da terra de origem.
Por isso, preservar e valorizar a culinária popular é também lutar pelo direito à identidade. É dizer que o saber do povo tem valor, que o tempero da comunidade é uma forma de expressão legítima e profunda.
9. Educação e cultura alimentar: um compromisso coletivo
A escola, os centros culturais, as associações comunitárias, todos têm um papel importante na valorização da cultura alimentar popular. Ao ensinar as crianças a preparar um prato tradicional, estamos transmitindo muito mais que uma técnica: estamos transmitindo uma visão de mundo.
A educação alimentar deve ir além da nutrição. Ela deve ensinar sobre a origem dos alimentos, o respeito ao ambiente, a importância da sazonalidade, a sabedoria dos antigos. Ela deve ser crítica, sensível e comunitária.
10. Conclusão: Sabores que contam histórias
Valorizar a culinária como expressão folclórica é reconhecer que nossa cultura vive nos pequenos gestos. No modo como se corta a mandioca, se tempera o peixe, se compartilha o prato. Cada receita é uma narrativa, um poema comestível.
Nos sabores populares está a alma de um povo. E quem aprende a ouvir essas vozes, sente o gosto da liberdade, da memória e da dignidade. É preciso cuidar desses saberes, pois neles está a chave para um futuro mais justo, mais diverso e mais humano.