
A escola precisa ser viva, pulsante, conectada com as vozes do povo. Ela não pode existir como torre de marfim, separada das experiências reais dos alunos. Nesse sentido, a literatura de cordel surge como uma aliada potente para uma educação mais libertadora, crítica e criativa. Mais do que um recurso didático, o cordel é uma ponte entre o saber popular e o conhecimento escolarizado.
Originário do sertão nordestino, o cordel carrega em seus versos a alma de um povo. Ele fala de amores, lutas, causos, mitos e injustiças. Ele canta o cotidiano, o sagrado e o profano. Ele resiste com poesia.
Neste artigo, vamos mergulhar profundamente nas possibilidades do uso do cordel como ferramenta pedagógica nas escolas brasileiras, reconhecendo sua potência para estimular a leitura, a escrita, o pensamento crítico e o protagonismo dos estudantes. Tudo isso sem perder de vista a valorização da cultura popular e o reconhecimento da identidade de cada aluno.
1. O que é a Literatura de Cordel?
A literatura de cordel é uma manifestação cultural popular nordestina que remonta ao século XIX. Seus textos são geralmente compostos em versos rimados e distribuídos em folhetos simples, tradicionalmente pendurados em cordões (daí o nome “cordel”).
Os cordéis abordam temas variados: histórias de amor, contos fantásticos, crítica social, religião, política, folclore e tudo aquilo que move o coração e o pensamento do povo.
Algumas de suas características principais incluem:
- Versos em redondilha (maior ou menor)
- Rima consonante
- Estrofes em sextilha, septilha ou décima
- Ilustrações em xilogravura
- Linguagem coloquial e acessível
- Forte tradição oral
Essa combinação entre forma, conteúdo e oralidade torna o cordel uma das expressões mais ricas e democráticas da literatura brasileira.
2. Cordel e Identidade Cultural
Inserir o cordel na escola é, antes de tudo, um ato de valorização da cultura brasileira. Em especial, da cultura nordestina. Em um país tão diverso como o Brasil, é essencial que os estudantes se reconheçam nas práticas escolares. Quando o cordel entra na sala de aula, ele carrega consigo os saberes dos avós, os sotaques das feiras, os causos das ruas, a poesia do sertão.
A identidade dos estudantes é fortalecida quando sua cultura é reconhecida como digna de estudo e produção. O cordel não é um folclore morto — é vivo, atual, combativo. Ele permite que os alunos compreendam suas raízes, orgulhem-se de sua história e vejam valor em seus modos de falar, sentir e pensar.
3. Cordel como Gatilho para o Letramento Crítico
O cordel não é apenas uma ferramenta para o letramento tradicional. Ele é também um caminho para o letramento crítico — aquele que ensina a ler o mundo antes de ler a palavra. Cada verso, cada metáfora, cada história de cordel é um convite à reflexão social, à análise das relações de poder, ao questionamento das injustiças.
Cordéis sobre seca, migração, política, racismo, machismo e desigualdade permitem que o estudante entre em contato com a realidade de forma poética, mas não menos contundente. A partir disso, ele é estimulado a se posicionar, argumentar, escrever seus próprios textos, contar sua versão da história.
Essa é uma pedagogia que liberta. Que transforma a palavra em instrumento de resistência.
4. Práticas Pedagógicas com Cordel: Caminhos na Sala de Aula
Há diversas maneiras de incluir o cordel na prática pedagógica. A seguir, algumas sugestões organizadas por áreas e objetivos:
a) Produção de Cordéis pelos Alunos
Estimular a criação de cordéis permite que os estudantes desenvolvam:
- Escrita criativa
- Conhecimento gramatical e estilístico
- Organização de ideias
- Autoconfiança na expressão escrita e oral
Eles podem escrever sobre:
- A escola ideal
- Questões ambientais
- Racismo e preconceito
- História local
- Personagens da comunidade
b) Leituras Dramáticas
A oralidade é central no cordel. Organizar rodas de leitura, saraus e dramatizações dos cordéis ajuda os estudantes a desenvolver:
- Expressão corporal e vocal
- Interpretação de texto
- Desinibição
- Trabalho em grupo
c) Cordel e História
O cordel pode ser usado como documento histórico. Ele ajuda a compreender como o povo viu e viveu certos acontecimentos:
- A chegada da luz elétrica
- As secas do sertão
- As promessas políticas
- A violência no campo
Comparar cordéis com fontes acadêmicas ou jornais permite desenvolver o pensamento crítico e a noção de múltiplas perspectivas.
d) Cordel e Geografia
Cordéis que falam sobre o sertão, as enchentes, as migrações, ajudam a:
- Compreender o espaço geográfico brasileiro
- Relacionar clima, solo, relevo e cultura
- Entender os impactos sociais das mudanças climáticas
e) Cordel nas Ciências
Cordéis podem abordar temas científicos de forma divertida, como:
- Higiene bucal
- Dengue
- Alimentação saudável
- Ciclo da água
Isso facilita a compreensão de conceitos e engaja alunos de forma lúdica.
5. Cordel e Inclusão: Vozes que se Amplificam
A linguagem do cordel é simples, acessível e próxima da oralidade. Isso o torna uma ferramenta poderosa para a inclusão de alunos com dificuldades de leitura e escrita, dislexia, ou que estão em processo de alfabetização.
Além disso, pode ser adaptado para Libras, Braille, áudios e dramatizações com interpretação. É uma literatura que abraça, que se molda ao público, que se transforma.
E mais: como ferramenta de representatividade, o cordel permite que alunos indígenas, negros, quilombolas e de comunidades tradicionais vejam sua realidade refletida, honrada e celebrada.
6. Projetos Interdisciplinares com Cordel
O cordel permite a criação de projetos que integram várias disciplinas e ampliam o escopo da aprendizagem:
Projeto | Disciplinas Envolvidas | Objetivo |
---|---|---|
“Cordel Ambiental” | Ciências, Português, Artes | Criar cordéis sobre preservação ambiental |
“Mulheres no Cordel” | História, Português, Sociologia | Estudar e produzir cordéis sobre figuras femininas da história |
“Cordel da Minha Comunidade” | Geografia, História, Português | Valorizar a cultura local |
“Cordel e Direitos Humanos” | Filosofia, Português, História | Discutir temas como racismo, machismo, desigualdade |
Esses projetos aproximam a escola do mundo real e fazem os alunos verem sentido no que aprendem.
7. A Formação de Professores e o Cordel
Para que o cordel seja bem trabalhado, é essencial que os professores sejam sensibilizados e capacitados para seu uso. Algumas sugestões incluem:
- Oficinas de criação de cordel para educadores
- Leitura e discussão de cordéis clássicos e contemporâneos
- Criação de acervos de cordel nas escolas
- Parcerias com cordelistas locais
O professor precisa reconhecer o valor do cordel não como “curiosidade folclórica”, mas como produção legítima de conhecimento e arte.
8. Desafios e Possibilidades
Ainda há resistência em alguns contextos escolares que desvalorizam a cultura popular, reproduzindo uma visão elitista de conhecimento. O desafio é romper essas barreiras e construir uma escola que acolha as vozes do povo.
É necessário também pensar em políticas públicas que incentivem a produção, difusão e uso pedagógico do cordel, especialmente em comunidades com pouco acesso a materiais didáticos culturalmente relevantes.
Apesar dos obstáculos, o potencial transformador do cordel é imenso.
Conclusão: Quando a Educação Rima com Liberdade
Trazer o cordel para a escola é fazer a educação rimar com identidade, cultura e liberdade. É criar um espaço onde o aluno é autor, não apenas leitor. Onde a palavra não é só técnica, mas também sentimento. Onde o conhecimento nasce do chão e floresce na mente.
Em cada estrofe criada por uma criança, em cada verso recitado com brilho nos olhos, vemos um novo mundo se desenhando. Um mundo em que a educação escuta antes de ensinar. Em que o saber se constrói junto, com alegria, com respeito, com poesia.
O cordel, quando entra na escola, transforma não só o currículo, mas o coração de quem ensina e aprende.