Introdução: A Educação que Nasce da Cultura Popular

As cantigas de roda e as parlendas são mais do que expressões folclóricas — elas são sementes de um saber que se constrói coletivamente, no seio da cultura e do afeto. Em muitos espaços educativos, essas manifestações são tratadas apenas como entretenimento ou atividades complementares. No entanto, para a criança, elas representam um universo complexo de aprendizagem, onde o brincar, o cantar e o falar se entrelaçam para formar o alicerce do desenvolvimento cognitivo, emocional e social.

A oralidade, nesse contexto, não é um simples meio de comunicação, mas sim um instrumento de formação da consciência. A música e a poesia que circulam nas rodas infantis ecoam o saber das gerações, transmitindo valores, linguagem, ritmo e identidade. São ferramentas de alfabetização emocional e linguística que, muitas vezes, antecedem o contato com o texto escrito.

O Que São Cantigas de Roda?

Cantigas de roda são composições musicais de domínio público, cantadas tradicionalmente por crianças em círculos, geralmente acompanhadas de gestos ou coreografias simples. Suas melodias são repetitivas e de fácil memorização, o que permite a participação coletiva e espontânea.

Exemplos clássicos incluem:

  • “Ciranda, Cirandinha”
  • “O Cravo Brigou com a Rosa”
  • “Se Essa Rua Fosse Minha”

Essas canções fazem parte do folclore oral e estão impregnadas de significados simbólicos, promovendo não apenas a ludicidade, mas também a organização do pensamento, a percepção musical, a ampliação do vocabulário e o desenvolvimento motor.

O Que São Parlendas?

Parlendas são pequenas rimas recitadas em ritmo acelerado, com sonoridade marcante e repetitiva. Elas funcionam como fórmulas mágicas para escolher participantes em jogos, iniciar atividades ou simplesmente entreter.

Exemplos:

  • “Uni duni tê, salamê minguê, o sorvete colorê…”
  • “Hoje é domingo, pé de cachimbo…”
  • “A galinha do vizinho bota ovo amarelinho…”

As parlendas ajudam a criança a desenvolver a articulação verbal, o domínio da língua, a coordenação entre fala e movimento, além de criar um senso de ritmo que prepara a mente para a leitura e a escrita.

A Oralidade Como Base da Educação

A oralidade é a primeira linguagem que a criança domina. Antes de aprender a escrever, ela já canta, recita, interpreta, imagina. As cantigas de roda e as parlendas são, portanto, instrumentos pedagógicos essenciais, pois se inserem no universo simbólico infantil de maneira natural, prazerosa e coletiva.

Elas criam uma ponte entre o mundo interno e o mundo social da criança. Ao cantar com o outro, a criança aprende a escutar, a esperar sua vez, a respeitar regras. Ao recitar parlendas, ela brinca com o som das palavras, ampliando sua consciência fonológica, habilidade essencial para o processo de alfabetização.

Desenvolvimento Cognitivo e Linguístico

Cantigas e parlendas estimulam:

  • Memória auditiva: Pela repetição de sons e frases.
  • Consciência fonológica: Discriminação de sons, rimas e sílabas.
  • Vocabulário: Ampliação do repertório linguístico.
  • Fluência verbal: Pela prática constante da oralidade.
  • Organização lógica: Sequência de ideias e regras de jogo.

Além disso, muitas cantigas apresentam estruturas narrativas simples, com início, meio e fim, permitindo que a criança compreenda o encadeamento de ações e relações de causa e efeito.

Desenvolvimento Motor e Corporal

Cantigas de roda, em particular, envolvem movimentos corporais coordenados: andar em círculo, bater palmas, pular, girar. Esses gestos estimulam:

  • Coordenação motora fina e ampla
  • Equilíbrio e noção espacial
  • Consciência corporal e ritmo
  • Integração sensorial

A corporeidade, nesse contexto, não é dissociada do saber. Pelo contrário: é através do corpo em movimento que o conhecimento se encarna e ganha sentido no cotidiano da criança.

Desenvolvimento Social e Emocional

Ao participar de rodas e recitar parlendas com colegas, a criança:

  • Aprende a conviver em grupo
  • Desenvolve empatia e cooperação
  • Trabalha sua autoestima e expressão pessoal
  • Compreende regras de turno e respeito mútuo
  • Aprende a lidar com frustrações (perder, sair da roda, errar a letra)

Essas experiências constroem habilidades socioemocionais valiosas para toda a vida, tornando a educação mais integral e conectada com as necessidades humanas reais.

A Cultura Popular como Patrimônio Pedagógico

Cantigas e parlendas são expressões vivas da cultura popular. Trazem em si o sotaque, os modos de dizer, os valores e as crenças de uma comunidade. Preservar e valorizar essas manifestações é também preservar o direito da criança de ter uma educação que dialogue com sua identidade e realidade.

Infelizmente, com a influência crescente de tecnologias e produtos culturais industrializados, essas tradições têm perdido espaço. Por isso, o educador comprometido com uma prática libertadora deve resgatar essas expressões como fontes legítimas de saber, capazes de promover uma aprendizagem significativa.

Cantigas na Sala de Aula: Práticas e Possibilidades

Algumas propostas pedagógicas:

  • Rodas diárias de música e movimento
  • Criação coletiva de novas parlendas
  • Ilustração de cantigas em murais
  • Reescrita e adaptação das letras
  • Exploração de rimas e fonemas
  • Teatro de parlendas e canções
  • Atividades de escuta ativa com instrumentos

Mais do que decorar letras, o objetivo é permitir que a criança vivencie a música e a poesia como expressão de si e do mundo, criando relações afetivas com o saber.

A Importância do Brincar

Brincar é a linguagem da infância. Nas cantigas e nas parlendas, o brincar aparece em sua forma mais pura: espontâneo, coletivo, livre. É no brincar que a criança se constitui como sujeito, experimenta papéis, simula realidades, elabora medos, expressa desejos.

As escolas que compreendem isso criam ambientes mais acolhedores, onde o conhecimento se dá de forma dialógica e significativa, e onde a ludicidade não é tratada como tempo perdido, mas como caminho legítimo de aprendizagem.

O Educador Como Mediador Afetivo

A função do educador é criar condições para que essas experiências aconteçam. Isso exige escuta sensível, respeito pelo saber popular, valorização das expressões infantis e disposição para cantar junto, brincar junto, aprender junto.

Mais do que ensinar cantigas, o educador compartilha experiências. Ele reconhece a potência pedagógica do coletivo, do simbólico, do afetivo. E, com isso, contribui para formar não apenas leitores e escritores, mas seres humanos mais inteiros e conectados com sua cultura e com o outro.

Considerações Finais

Cantigas de roda e parlendas são manifestações simples apenas na aparência. Na prática, são complexas ferramentas de aprendizagem, que envolvem linguagem, música, movimento, emoção e cultura. Seu resgate e valorização são fundamentais para uma educação que não se limita a transmitir conteúdos, mas que busca formar sujeitos críticos, criativos e sensíveis.

Uma educação verdadeiramente transformadora começa na escuta. E poucas coisas são tão poderosas quanto o som da voz de uma criança que canta com alegria, que recita com encantamento, que brinca com liberdade. Nesses momentos, nasce o aprendizado que não se apaga: aquele que faz sentido, porque nasce da vida.

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