
Introdução: A cultura que nos habita
A sala de aula não é um espaço neutro. Ela pulsa com as histórias, os saberes e os sentimentos que os estudantes carregam consigo desde o berço. Entre esses saberes, as lendas e mitos do imaginário popular brasileiro ocupam um lugar central. Elas não são apenas “contos de assombração” contados por avós em noites de lua cheia — são expressões vivas da nossa ancestralidade, da nossa história, das lutas do povo e da riqueza simbólica que molda identidades.
Trabalhar essas narrativas na escola é, portanto, uma forma de reconhecer o estudante como sujeito histórico e cultural, capaz de pensar criticamente o mundo em que vive. Mais do que transmitir conteúdos prontos, o papel do educador é criar pontes entre os saberes populares e o conhecimento formal, ampliando horizontes e despertando a consciência crítica.
O que são mitos e lendas?
Antes de levar as lendas para o cotidiano escolar, é importante entender o que elas representam. Mitos e lendas são formas de narrativa oral que buscam explicar o mundo a partir da vivência e da visão de mundo de um povo. Embora muitas vezes os termos sejam usados como sinônimos, há distinções:
- Mitos são narrativas sagradas ou simbólicas que procuram explicar fenômenos da natureza, a origem do mundo ou dos seres. Ex: a criação do mundo segundo as cosmovisões indígenas.
- Lendas são histórias populares que misturam realidade e fantasia, muitas vezes com elementos de moral ou mistério. Ex: Saci-Pererê, Iara, Curupira, Boto-cor-de-rosa.
Ambos os gêneros carregam aspectos da cultura e da história das comunidades que os produzem, servindo como veículos de transmissão de valores, crenças e memórias.
A importância do imaginário na formação do sujeito
O imaginário popular não é mero devaneio ou fantasia. Ele é constituinte da forma como o sujeito compreende o mundo. Quando o estudante ouve histórias sobre o Curupira protegendo a floresta ou sobre o Boto encantando as moças do vilarejo, ele entra em contato com modos de ver, sentir e explicar a realidade que fazem parte de um saber coletivo.
Esse saber, transmitido por meio da oralidade, da tradição e da vivência cotidiana, é muitas vezes desconsiderado na escola, que privilegia o conhecimento “científico”, “acadêmico”, “universal”. No entanto, negar o saber popular é negar a cultura do estudante — é torná-lo estrangeiro dentro do próprio processo educativo.
Trazer mitos e lendas para a sala de aula é uma forma de valorizar o que os alunos já sabem, partir de suas experiências e construir o conhecimento a partir de um diálogo genuíno. Isso transforma a educação em um ato de liberdade.
Lendas brasileiras: um mapa cultural da diversidade
O Brasil é um território extenso e plural. Suas lendas refletem essa diversidade. Cada região carrega seus próprios mitos, que se misturam com influências indígenas, africanas e europeias. Eis alguns exemplos emblemáticos:
Norte: A força da floresta
- Boto-cor-de-rosa: Lenda amazônica sobre um boto encantado que se transforma em homem nas festas para seduzir moças. Representa temas como fertilidade, sexualidade e o mistério dos rios.
- Mapinguari: Criatura lendária da floresta com um só olho e boca na barriga. Expressa o medo do desconhecido e da força da mata.
Nordeste: Fé, resistência e encantamento
- Mãe-d’Água: Figura encantada que vive nos rios, semelhante à Iara, mas com elementos próprios do sertão.
- Cabra-Cabriola: Ser assustador que persegue crianças desobedientes. Mistura pedagogia do medo com humor e folclore.
Centro-Oeste: Mitos do cerrado
- Cabeça de Cuia: Jovem que mata a mãe e é transformado em monstro. Circula em lendas próximas ao rio Parnaíba.
- Homem do Saco: Presente em várias regiões, mas com força especial no interior do país, associado a práticas de disciplina social.
Sudeste: Urbanização e adaptação do folclore
- Loira do Banheiro: Lenda urbana escolar, fruto da mistura entre o antigo e o contemporâneo.
- Mulher da Estrada: Espírito de mulher que aparece para motoristas solitários, gerando reflexões sobre feminicídio e violência.
Sul: Tradição europeia e adaptação local
- Negrinho do Pastoreio: História afro-cristã com crítica social à escravidão. Reflete fé, racismo e esperança.
- Vila encantada: Lendas germânicas reinterpretadas no contexto brasileiro, como a ideia de cidades que surgem e desaparecem misteriosamente.
A pedagogia da escuta: partindo da voz dos alunos
O educador que deseja trabalhar mitos e lendas deve começar por escutar. Escutar com atenção amorosa o que os alunos já sabem, ouvir as histórias que eles aprenderam com suas famílias, valorizar os sotaques, os medos, os encantos que essas narrativas despertam.
É a partir dessa escuta que se constrói o plano de trabalho pedagógico. Em vez de impor um conteúdo, o professor propõe uma investigação conjunta: “Que lendas vocês conhecem?”, “Quais são as histórias mais antigas da sua comunidade?”, “Você já teve medo do Saci?”, “Você acredita na Loira do Banheiro?”
Essas perguntas são pontos de partida para um mergulho cultural que envolve pesquisa, leitura, dramatização, escrita criativa, ilustração, e até produção audiovisual.
Propostas de atividades pedagógicas
1. Roda de Histórias
- Incentive os alunos a contarem lendas que ouviram de parentes.
- Grave os relatos e monte um “audiolivro da turma”.
2. Mapa Interativo das Lendas
- Localize no mapa do Brasil as lendas citadas pelos alunos.
- Use recursos digitais como Google Earth ou mapas colaborativos.
3. Teatro de Lendas
- Transforme as histórias em peças curtas encenadas pelos alunos.
- Trabalhe expressão corporal, roteiro e produção de figurino.
4. Jornal do Folclore
- Produza um jornal com entrevistas fictícias com personagens lendários.
- Inclua seções de opinião, notícias e quadrinhos.
5. Podcast “Vozes do Imaginário”
- Estudantes podem criar episódios com base nas lendas estudadas.
- Inserir trilhas sonoras e dramatizações.
6. Exposição Artística “Rostos do Imaginário”
- Produção de esculturas, máscaras ou desenhos representando os personagens das lendas.
- Exposição aberta à comunidade escolar.
Desmistificando o folclore com pensamento crítico
O trabalho com lendas não deve se limitar à repetição dos enredos. É necessário também interpretá-las à luz do contexto histórico, social e político. Perguntar:
- O que essa lenda nos ensina?
- Que valores ela transmite?
- Como ela reflete o tempo e o lugar onde foi criada?
- Que preconceitos ou estereótipos ela pode reproduzir?
Por exemplo, a figura da Iara pode ser debatida a partir da questão de gênero. O Boto pode gerar discussões sobre responsabilidade paterna. O Negrinho do Pastoreio pode provocar reflexões sobre a escravidão e o racismo estrutural.
A transversalidade das lendas
Mitos e lendas dialogam com diversas áreas do conhecimento:
- Português: narrativa, gêneros textuais, oralidade, leitura crítica.
- História: formação cultural do Brasil, herança indígena, africana e europeia.
- Geografia: localização regional das lendas.
- Artes: dramatização, ilustração, música.
- Sociologia e Filosofia: reflexão ética e crítica dos significados simbólicos.
Descolonizar a escola
A valorização das lendas é um ato político. Em um país que sofreu processos intensos de colonização, trazer à tona as histórias do povo é uma forma de resistência. É afirmar que a cultura brasileira não é inferior à europeia; que o saber da comunidade é válido; que o encantamento é também conhecimento.
Isso não significa abandonar os livros, os clássicos ou a ciência, mas sim construir pontes entre o saber popular e o saber acadêmico, permitindo que o estudante perceba que ele próprio é produtor de cultura e que sua vivência tem lugar legítimo na escola.
Conclusão: ensinar com o encantamento
Trabalhar mitos e lendas em sala de aula é despertar o encantamento — e também a consciência. É permitir que o estudante se reconheça nas histórias que ouve, questione os significados, reconstrua as narrativas e se veja como parte ativa de um processo de aprendizagem que é, antes de tudo, um processo de humanização.
Na escuta, no diálogo e no respeito aos saberes do outro, a escola se transforma. E o que antes era apenas um conto de assombração pode se tornar uma ponte entre mundos, entre culturas, entre sujeitos. O imaginário popular não é algo do passado — é matéria viva do presente. E, nas mãos dos educadores, pode ser semente de um futuro mais crítico, mais plural e mais justo.